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13 de outubro de 2024

Sua criança interior

     Na minha mente esse é o primeiro dia das crianças em 5 anos. Eu realmente esqueci da existência dessa data, eu não via nenhuma propaganda sobre esse dia nem ninguém no meu círculo falando sobre, de repente eu começo a ver postagens sobre isso e meu círculo de amigos comparando nossas fotos de criança. O que aconteceu?

    Eu acho o romantismo da infância meio bobo na maioria das vezes, eu sou muito mais legal agora do que eu era em 2013, meu entendimento do mundo é melhor e a minha capacidade de desfrutar a vida é muito mais completa do que quando eu tinha... o quê, 5 anos? Ser criança é uma merda! Claro que aquela memória específica sobre algo que eu não posso viver de novo é nostálgica e bonita, mas, se dado a oportunidade, eu jamais voltaria a ser criança. 

    Eu tenho algum bloqueio mental que me impede de consumir qualquer mídia explicitamente direcionada a crianças, eu odeio desenho de criança, músicas infantis e o jeito escroto que adultos conversam com bebês, salvo exceções. Mesmo assim eu tenho um fascínio com esse tipo de obra e aqueles que dedicam sua vida a educar e entreter durante o trecho mais incompreendido da vida de um ser humano.

    Adoro pensar que um dos escritores de livros infantis mais famosos dos EUA (e consequentemente, do mundo) frequentemente visitava a mansão playboy e compôs A Boy Named Sue (inicialmente interpretado por Johnny Cash), Shel Silverstein é um daqueles caras cuja imagem real era um completo oposto de sua obra, assim como o Hayao Miyazaki e o Junji Ito.

The Flooby Dooby Doo – música de Shel Silverstein | Spotify 

    Talvez nem na literatura infantil esse cara fugiu de controvérsia, A Árvore Generosa e seu final aberto para interpretação transformou o livro numa peça de discussão assídua sobre a verdadeira mensagem por trás da história, sujeito e reedições e mudanças pequenas na história que completamente mudam o seu significado.

July 23, 2020 - Presbytery of Baltimore 

 

    Fica de recomendação o excelente vídeo do Solar Sands sobre o livro.

    Eu tenho profundo respeito por aqueles que tratam uma criança com respeito o suficiente a ponto de lhes dar a liberdade de interpretar sua obra como quiserem, talvez sem nem elas saberem, um final em aberto demonstra isso muito mais do que uma conclusão mastigadinha e segura para o espectador.

    Digimon também faz muito isso. Todo o conceito de "Monstros digitais" na saga Adventure pode ser enxergado como uma alegoria muito fantasiosa pra como as crianças que nasceram já inseridas no meio digital interpretam essa coisa que eles não entendem muito bem, além do escapismo proporcionado por elas, mas isso só se aplica aos episódios dirigidos pelo Hosoda. (Sério, assista o OVA de Digimon Adventure! A animação é muito boa pra época e pouca gente o conhece pela maneira estranha que ele foi adaptado pro ocidente...)

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    Aquilo que assistíamos, lemos ou escutávamos há muito tempo, principalmente quando crianças ficam conosco de maneira que outras obras, mesmo que melhores em qualidade, jamais conseguirão ficar na nossa memória da mesma maneira, a leve memória de um desenho animado sobre coelhos monocromáticos parisienses me fascinou por tanto tempo que, mesmo eu não lembrando de onde essa memória vinha, eu tinha certeza que ela era real, e realmente era! Gaspard et Lisa existe e é pra mim o que sylvanian families foi para as garotas alternativas com uns parafusos a menos.

LCX x Gaspard et Lisa “Joyful Christmas” Free Mobile Wallpaper Download |  LCX 

 

    Talvez o fascínio com a infância venha de o quão único esse período é na vida das pessoas e como é praticamente impossível experienciar as coisas infantis com o mesmo brilho nos olhos de uma criança, vá em frente, reassista os filmes da Barbie ou os stop motions fofíssimos da Hello-Kitty, Talvez você encontre uma qualidade ali que faça o todo da experiência valer a pena, mas não vai ser o mesmo, e tá tudo bem! Só o fato de enxergar novas qualidades em alguma mídia da sua infância é lindo, mostra crescimento, amadurecimento e caráter! Não gosto do saudosismo da infância porque a eterna nostalgia é estagnante, mas não precisa matar a criança dentro de você que nem eu fiz por um tempo. Não se importe, gaste quantidades obscenas de dinheiro em cartinhas de pokémon, vá no wayback machine de vez em quando e lembre como você adorava visitar o site da Discovery Kids quando criança, só tenha cuidado em achar um bom meio termo pra não se perder nesse ciclo.

(OBS: Esse último parágrafo é mais pra mim do que pra você, leitor. Eu realmente preciso parar de odiar a minha infância.)

Se alguém realmente leu até aqui, muito obrigado! Eu me diverti muito escrevendo isso e feliz dia das crianças atrasado para todos. Fui!

     

6 de outubro de 2024

28.340 Mortos em 13 de Fevereiro de 2024

 

 

O contexto é uma ferramenta poderosa, né?


É por meio dele que construímos a nossa visão sobre tudo que nos cerca, e com música não é diferente. “Será que a minha opinião sobre esse álbum seria diferente se o artista ainda estivesse vivo? E se eu não falasse a língua cantada nesse outro disco?” Eu me pergunto. Mas dessa vez essa dúvida se destaca mais do que eu gostaria.

O álbum "NO​ ​TITLE AS OF 13 FEBRUARY 2024 28​,​340 DEAD" é, desde o seu primeiro momento, explicitamente sobre o conflito Israelita-Palestino, seu nome, em tradução livre, é “NÃO HÁ TÍTULO, EM 13 DE FEVEREIRO DE 2024, 28.340 MORTOS”, sendo esse número a quantidade de civis palestinos brutalmente assassinados por ataques israelitas até a data mencionada.

O contexto, novamente, vem à tona: Será que essas músicas seriam igualmente apreciadas se elas não fossem relacionadas a um tópico tão sensível? Estaria a banda se aproveitando de um genocídio contemporâneo para alavancar seu impacto e reconhecimento? Já havia pensado nisso quando se trata da banda “Godspeed You! Black Emperor”, grupo canadense de pós-rock que não tem medo de ser político em sua obra, mesmo sendo completamente instrumental.

Não é ignorante tentar criar uma obra de arte em cima disso? Não há poesia, canção ou beleza que possa ser extraída de uma tragédia dessa magnitude, mas eu devolvo essa pergunta pra mim mesmo: Não é ignorante escrever sobre uma guerra no conforto de minha casa, num país pacífico, longe de tudo?


Eu sou extremamente privilegiado por estar onde estou.


Pessoalmente, não acho que esse seja o caso, não acho que essa obra foi criada apenas para capitalizar em cima da tragédia, porque ela tem algo a dizer; não é sobre ideologia política A ou B, nem sobre religião X ou Y, é sobre o denominador comum humano, a vontade de viver, e as 28.340 almas ceifadas por um motivo ignorante e maligno, número esse que dobrou desde que o título do disco foi cunhado.


A sequência de “SUN IS A HOLE SUN IS VAPORS” e “BABYS IN A THUNDERCLOUD” deixam difícil passar por elas sem se comover, é a melancolia e a desesperança expressada sem nenhuma palavra, aquele entalo na garganta que não te permite chorar, talvez uma combinação de instrumentos não ortodoxa passa uma estranheza ao ouvinte, junto com a grandiosidade que “BABYS IN A THUNDERCLOUD” atinge no final, não é um grandioso bonito, que nem nos discos anteriores de Godspeed You! Black Emperor, isso não é como Storm, não é Lift Your Skinny fists, é completamente diferente, e vaga num território explorado por pouquíssimos artistas com uma competência milagrosa.

O mar de guitarras ecoantes afogado por ruídos ríspidos característicos do Drone falam uma linguagem universal, entendida em árabe, inglês, português, qualquer língua, e reverbera nos tímpanos dos mais rígidos políticos engravatados, despidos de alma e coração pelo incessante desejo por poder. Não há uma palavra pronunciada por toda a duração do disco, em nenhum alfabeto ou dialeto, com a exceção de um poema na canção RAINDROPS CAST IN LEAD, ele está em espanhol, no segundo plano, debaixo dos loops de feedback dos amplificadores e em qualidade relativamente baixa:


Gotas de chuva misturadas com chumbo

Nosso lado iluminado

E logo extinto, enterrado e terminado

Debaixo de um sol perfeito

Debaixo do corpo que cai do céu

Foram mártires que caíram

Porque do nosso lado, haviam mártires desde antes mesmo de nascermos

Aqueles que tentaram foram mortos por tentar

Aqueles que morreram jovens, furiosos e idosos e que nunca viram o amanhecer

Inocentes e pertencentes aos pequenos corpos que riam e adormeceram para sempre

E que nunca viram a beleza do amanhecer.”


-Autor desconhecido

(tradução livre)


Esse disco invoca uma profunda tristeza em mim, me enfurece saber que eu não posso fazer nada fora observar, forçado a ver vídeos e registros dos corpos de civis sendo arrastados no meio dos destroços de concreto e poeira, impulsionados na minha direção por um algoritmo virtual perverso, enquanto figuras digitais insistem em negar a existência de um genocídio, torcendo para um lado ou para outro, pisoteando os corpos dos milhares mortos por explosões e balas de chumbo. Meu coração começa a bater forte e eu não sei pra onde direcionar essa raiva.


Eu não sei o que pensar de PALE SPECTATOR TAKES PHOTOS (UM ESPECTADOR PÁLIDO TIRA FOTOS), talvez tentando exemplificar como esse é um dos horrores da humanidade mais bem registrados da história, essa música incha e aponta para o maior crescendo do álbum, é muito fácil encontrar vídeos de crianças morrendo em gaza, e acho que nem a própria canção consegue demonstrar o sentimento de pura desolação que esse fato implica, é um absurdo tão grande que meu cérebro nem consegue registrar o que isso significa, a música acelera, as guitarras ficam mais barulhentas, desgovernadas, não é um “épico”, muito menos um refrão, é a raiva.


Talvez GREY RUBBLE - GREEN SHOOTS seja um final feliz, ou não, depende da sua interpretação, mas a impressão que esse disco me deixou é que mesmo no ponto musical mais baixo, as melodias carregavam um leve tom de esperança, de luz no fim do túnel, é um sentimento difícil de explicar, mas está lá, eu sei.


Os últimos minutos onde, em comparação com o resto da obra, há calma e silêncio talvez sejam uma alegoria ao final da guerra, um violino tremedeiro é o que resta da música, pode ser que a paz tenha sido atingida na canção, mas a que custo? A música está mais silenciosa, a faixa de Gaza contém menos pessoas, menos prédios, menos vida, e as almas de milhares descansam, tendo sua existência diminuída para a de uma vala comum.


Eu não me sinto confortável avaliando esse álbum, pelo menos por enquanto. Os discos de Godspeed You! Black Emperor sempre são os que mais dão trabalho pra dar uma nota, não tem como quantificar tudo isso em um número de zero a cinco estrelas, talvez eventualmente eu dê uma nota pra ele, assim como foi em Lift Your Skinny Fists Like Antennas to Heaven, mas por enquanto eu abstenho de dar uma nota para esse disco e suas músicas. Peço desculpas caso esse texto tenha ofendido alguém. Obrigado por ler.

 

Do rio ao mar, liberdade na Palestina!