O contexto é uma ferramenta poderosa, né?
É por meio dele que construímos a nossa visão sobre tudo que nos cerca, e com música não é diferente. “Será que a minha opinião sobre esse álbum seria diferente se o artista ainda estivesse vivo? E se eu não falasse a língua cantada nesse outro disco?” Eu me pergunto. Mas dessa vez essa dúvida se destaca mais do que eu gostaria.
O álbum "NO TITLE AS OF 13 FEBRUARY 2024 28,340 DEAD" é, desde o seu primeiro momento, explicitamente sobre o conflito Israelita-Palestino, seu nome, em tradução livre, é “NÃO HÁ TÍTULO, EM 13 DE FEVEREIRO DE 2024, 28.340 MORTOS”, sendo esse número a quantidade de civis palestinos brutalmente assassinados por ataques israelitas até a data mencionada.
O contexto, novamente, vem à tona: Será que essas músicas seriam igualmente apreciadas se elas não fossem relacionadas a um tópico tão sensível? Estaria a banda se aproveitando de um genocídio contemporâneo para alavancar seu impacto e reconhecimento? Já havia pensado nisso quando se trata da banda “Godspeed You! Black Emperor”, grupo canadense de pós-rock que não tem medo de ser político em sua obra, mesmo sendo completamente instrumental.
Não é ignorante tentar criar uma obra de arte em cima disso? Não há poesia, canção ou beleza que possa ser extraída de uma tragédia dessa magnitude, mas eu devolvo essa pergunta pra mim mesmo: Não é ignorante escrever sobre uma guerra no conforto de minha casa, num país pacífico, longe de tudo?
Eu sou extremamente privilegiado por estar onde estou.
Pessoalmente, não acho que esse seja o caso, não acho que essa obra foi criada apenas para capitalizar em cima da tragédia, porque ela tem algo a dizer; não é sobre ideologia política A ou B, nem sobre religião X ou Y, é sobre o denominador comum humano, a vontade de viver, e as 28.340 almas ceifadas por um motivo ignorante e maligno, número esse que dobrou desde que o título do disco foi cunhado.
A sequência de “SUN IS A HOLE SUN IS VAPORS” e “BABYS IN A THUNDERCLOUD” deixam difícil passar por elas sem se comover, é a melancolia e a desesperança expressada sem nenhuma palavra, aquele entalo na garganta que não te permite chorar, talvez uma combinação de instrumentos não ortodoxa passa uma estranheza ao ouvinte, junto com a grandiosidade que “BABYS IN A THUNDERCLOUD” atinge no final, não é um grandioso bonito, que nem nos discos anteriores de Godspeed You! Black Emperor, isso não é como Storm, não é Lift Your Skinny fists, é completamente diferente, e vaga num território explorado por pouquíssimos artistas com uma competência milagrosa.
O mar de guitarras ecoantes afogado por ruídos ríspidos característicos do Drone falam uma linguagem universal, entendida em árabe, inglês, português, qualquer língua, e reverbera nos tímpanos dos mais rígidos políticos engravatados, despidos de alma e coração pelo incessante desejo por poder. Não há uma palavra pronunciada por toda a duração do disco, em nenhum alfabeto ou dialeto, com a exceção de um poema na canção RAINDROPS CAST IN LEAD, ele está em espanhol, no segundo plano, debaixo dos loops de feedback dos amplificadores e em qualidade relativamente baixa:
“Gotas de chuva misturadas com chumbo
Nosso lado iluminado
E logo extinto, enterrado e terminado
Debaixo de um sol perfeito
Debaixo do corpo que cai do céu
Foram mártires que caíram
Porque do nosso lado, haviam mártires desde antes mesmo de nascermos
Aqueles que tentaram foram mortos por tentar
Aqueles que morreram jovens, furiosos e idosos e que nunca viram o amanhecer
Inocentes e pertencentes aos pequenos corpos que riam e adormeceram para sempre
E que nunca viram a beleza do amanhecer.”
-Autor desconhecido
(tradução livre)
Esse disco invoca uma profunda tristeza em mim, me enfurece saber que eu não posso fazer nada fora observar, forçado a ver vídeos e registros dos corpos de civis sendo arrastados no meio dos destroços de concreto e poeira, impulsionados na minha direção por um algoritmo virtual perverso, enquanto figuras digitais insistem em negar a existência de um genocídio, torcendo para um lado ou para outro, pisoteando os corpos dos milhares mortos por explosões e balas de chumbo. Meu coração começa a bater forte e eu não sei pra onde direcionar essa raiva.
Eu não sei o que pensar de PALE SPECTATOR TAKES PHOTOS (UM ESPECTADOR PÁLIDO TIRA FOTOS), talvez tentando exemplificar como esse é um dos horrores da humanidade mais bem registrados da história, essa música incha e aponta para o maior crescendo do álbum, é muito fácil encontrar vídeos de crianças morrendo em gaza, e acho que nem a própria canção consegue demonstrar o sentimento de pura desolação que esse fato implica, é um absurdo tão grande que meu cérebro nem consegue registrar o que isso significa, a música acelera, as guitarras ficam mais barulhentas, desgovernadas, não é um “épico”, muito menos um refrão, é a raiva.
Talvez GREY RUBBLE - GREEN SHOOTS seja um final feliz, ou não, depende da sua interpretação, mas a impressão que esse disco me deixou é que mesmo no ponto musical mais baixo, as melodias carregavam um leve tom de esperança, de luz no fim do túnel, é um sentimento difícil de explicar, mas está lá, eu sei.
Os últimos minutos onde, em comparação com o resto da obra, há calma e silêncio talvez sejam uma alegoria ao final da guerra, um violino tremedeiro é o que resta da música, pode ser que a paz tenha sido atingida na canção, mas a que custo? A música está mais silenciosa, a faixa de Gaza contém menos pessoas, menos prédios, menos vida, e as almas de milhares descansam, tendo sua existência diminuída para a de uma vala comum.
Eu não me sinto confortável avaliando esse álbum, pelo menos por enquanto. Os discos de Godspeed You! Black Emperor sempre são os que mais dão trabalho pra dar uma nota, não tem como quantificar tudo isso em um número de zero a cinco estrelas, talvez eventualmente eu dê uma nota pra ele, assim como foi em Lift Your Skinny Fists Like Antennas to Heaven, mas por enquanto eu abstenho de dar uma nota para esse disco e suas músicas. Peço desculpas caso esse texto tenha ofendido alguém. Obrigado por ler.
Do rio ao mar, liberdade na Palestina!
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